sábado, 26 de junho de 2010

TEM UMA COISA ESCONDIDA NO SONHO


Era uma solidão escura e pegajosa e cheirando a detergente. Eu caminhava entre as cadeiras ocupadas – não todas, algumas – por bonecos. Fantoches de pano recheados de palha seca. Nos rostos uma expressão construída de felicidade. Eu sentia que havia mais alguém ali. Alguns. Sabia pelos gemidos e por um movimento furtivo. E sempre que eu me virava na direção do movimento acordava sobressaltado. Dentro do peito uma sensação de vazio grande, feito buraco cavado sem cuidado. Doía o corpo todo, a respiração curta. “Deus!”, eu pensava. “O que isso quer dizer?”. Há quase dois meses eu tinha o mesmo sonho. Começava cedo, acordado. A sensação de buraco no peito dava uma pontada por qualquer coisa: um casal de amigos queridos convidava pra uma visita, um amigo chegava de viagem, a mocinha da novela finalmente era beijada, “não toque essa música que eu não posso ouvir...” cantava o Odair José. Odair José?! Mesmo?! Daí pra pior. O dia se arrastava, eu tinha muita sede, a boca amargava sem que eu comesse nada num fastio de dar pena. Irritado, distante, sonolento, vazio, vazio. E conforme a noite chegava ia me dando um medo, uma coisa ruim, e era dormir, sonhava. “Era uma solidão escura e pegajosa e cheirando a detergente...” Então um dia eu olhei na direção do que se mexia e não acordei. Eu tinha passado pelas cadeiras e visto os fantoches, mas voltara rápido a tempo de vê-lo, não um boneco, gente, homem como eu. Voltei e olhei pra ele e ele me olhou e eu, devagar, me aproximei e perguntei se podia sentar do seu lado. “Claro!”. Ninguém falava nada e eu só ouvia os gemidos. Eu e ele olhávamos para frente e não falávamos num receio de visagem em noite sem lua. Foi quando eu me virei e precisava ter certeza e levando a mão esquerda toquei seu peito. Era quente e batia acelerado e ele me olhava tão fundo nos olhos que parecia forçar uma porta trancada aqui dentro de ferrolhos tão antigos e tão enferrujados que o trinco abriu e as folhas se escancararam par em par num som apavorante que doeu a cabeça e minha mão aquecida espalhava aquele calor pelo braço e peito, cabeça, tronco, pernas e doía e a vista escurecia e o ar não passava na garganta e eu senti que ia desmaiar e lutava contra isso porque me parecia que eu passaria do sonho à morte e eu comecei a chorar alto e pedir socorro e fui desfalecendo e então ouvi: “Abra os olhos, respira, fica conosco!”. Abri os olhos e me vi num círculo onde todo mundo me olhava com carinho. “Ainda queres isso aí dentro?” um outro homem perguntava, a destra no meu peito. “Não!” eu respondi. “Então tira! Deixa sair!” ele me disse. Olhei o meu peito arfante que parecia avermelhado, toquei-o de leve e olhei o meu parceiro. Parceiro?! Sim, era isso o que ele parecia agora, que me disse “Vai!” com um leve acento de cabeça. Minha mão sobre o peito foi se abrindo e entre os dedos como que uma teia e eu fui puxando aquilo e com a outra mão e puxando, mais, metros, viscoso, frio e então parei. Se eu terminasse de puxar, não arrancaria também meu coração? “Não vais morrer!”, ele disse, o segundo homem. “Eu estou aqui!” me dizia o companheiro do fundo dos seus olhos castanhos. E foi só mais um puxão. Decidido, brusco, algo calculado. Acordei devagar, vindo do sono pra luz do dia nascendo num suspiro de corpo largado. As costas dele contra o meu peito e um cheiro bom de vinho e pimenta. Sorri largo e quieto pra que ele não acordasse e me deixei ficar.

HUDSON ANDRADE

14 de junho de 2010 9h31


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