Ghûl
Noite no Shepperd’s Hotel e de seus salões ecoava o som de festa. Dr. Marc adentrou o lobby e dirigiu-se ao salão principal. Checou seu relógio de bolso no colete de linho e procurou o motivo de sua visita, no salão cheio de casais que rodopiavam na pista de dança, enquanto outros desfrutavam do champanhe e das iguarias do hotel. Lindas moças desfilavam seus vestidos brancos à procura de rapazes ricos de férias no Cairo.
“Marc! Aqui, meu velho, venha aqui!” A voz veio de uma mesa atrás de uma coluna no meio do salão.
Acenando entusiasmado estava um sujeito corpulento, um pouco obeso, vestido em um terno azul-escuro, de boa qualidade. Óculos escuros quase escondiam os olhos castanhos do homem, cujo rosto quadrado apresentava cabelos negros, grisalhos nas têmporas. Marc dirigiu-se até a mesa, notando que seu velho amigo, Jean Paul Visant, deixara crescer suíças.
Marc conhecera Jean Paul quando eram crianças, em Londres, enquanto o primeiro tinha ido para a escola médica, o segundo escolhera o estudo da Arqueologia, com tamanho entusiasmo que até era responsável por um periódico sobre o assunto.
Eles ainda se correspondiam esporadicamente, mas pelo que constava ao jovem médico, seu amigo Jean Paul se interessava mais pela história oriental e não pela do Egito:
“Jean Paul, quanto tempo!” Marc abraçou o velho e corpulento amigo, sentando-se. “Como vão as coisas? E seus negócios?”
“Tudo vai indo muito bem, Marc. Aliás, falando em negócios, foi justamente isso que me trouxe aqui.”
“Pensei que fossem férias…”
“Pelo contrário! Mas, vamos… sirva-se de algo.”
Marc serviu-se do champanhe da mesa. Notou uma pilha de papéis que repousavam na mesa ao lado do amigo, alguns muito antigos. Jean Paul esvaziou a garrafa e pediu mais uma ao garçom, a despeito dos protestos do médico.
“Então, Jean Paul, se não foram pelas belezas do Cairo, qual a razão de sua visita? Com certeza não veio apenas visitar um amigo” Marc sorriu apontando para os papéis.
As feições de Jean Paul pareceram mudar por um instante, mas logo ele recobrou o bom humor:
“Infelizmente não, meu velho, embora eu entenda que você está morando com alguém… uma egípcia, se não me engano?”
Marc baixou os olhos e sorriu ao lembrar-se de Shebeia e de seus belos olhos verdes. Ele a deixara no Continental Savoy, tocando sua harpa com seus dedos delicados.
Realmente, parece que fui arrebatado pelos mistérios do Oriente Médio. Mas e você? O que faz aqui?”
“Arqueologia, como sempre.”
“O quê especificamente na arqueologia?”
“É meio complicado. Você sabe que meu interesse maior é no extremo oriente, mas não pude deixar de vir depois do que achei nos arquivos da universidade…” Jean Paul abriu espaço entre os copos e colocou os papéis sobre a mesa.
Todos eram pergaminhos antigos. Alguns em hebraico, outros em hieróglifos e dois documentos mostravam o selo papal. Marc examinou-os intrigado, notando na maioria deles a figura de uma cabeça humana cortada. O tom sério do amigo fez-lhe desviar a atenção dos documentos:
“O que você sabe sobre o papa Silvestre II?”
“Nada. Deveria?” Marc serviu-se do champanhe.
“Não, claro. O papa Silvestre II era conhecido por ser um necromante, ou feiticeiro, se preferir. Bem, de acordo com este documento papal, ele tinha entre seus pertences uma cabeça de latão de tamanho natural, que podia falar, dominar os homens e fazer profecias.”
Marc baixou o copo enquanto os cabelos de sua nuca arrepiavam. Por alguma razão, algo estava errado. Perguntou, cauteloso:
“E o que isto tem a ver com o Cairo?”.
Jean Paul sorriu e excitado, mostrou um papiro:
“Isto aqui foi comprado em 1876 no Cairo; pertence à vigésima primeira dinastia. Vê estes símbolos? Eles descrevem uma cabeça humana, em posse do sacerdote do faraó, dotada de poderes extraordinários e grande conhecimento.” Então mostrou um pergaminho em hebraico e outro em grego:
“Este fala do início da construção do templo de Salomão, e como ele aprisionou um espírito em uma cabeça de latão e fez com que lhe contasse os segredos do céu e da terra! E este aqui, é de um cronista que descreve uma pilhagem feita por cruzados nos túmulos perto de Lúxor. Eles levaram consigo uma cabeça de latão que se acreditava ser possuída por demônios!”.
O mal estar de Marc aumentou. Espíritos, demônios possuindo cabeça de latão… Tudo isto desagradava o médico; já tivera péssimas experiências sobre o tópico. Era como se em seu íntimo, alguma coisa tentasse puxá-lo para um abismo e o médico tentasse se agarrar em alguma coisa a fim de não afundar. Talvez fosse a voz de Jean Paul, mas muitas coisas não se encaixavam; Ele não acreditava que Jean Paul tivesse encontrado todos estes documentos em uma universidade. De onde viriam então?
De qualquer forma, Marc sentia-se fascinado com a paixão com que o amigo tecia sua história. Ele estava sendo atraído pelo mistério e seu íntimo odiava aquilo:
“Jean Paul, pelo que você me disse, essa tal cabeça já saiu do Egito há muito tempo. Não sei o que você…”
“Não, Marc. Veja este documento papal: ele descreve como a tumba do papa Silvestre II foi violada e pilhada. A dita cabeça de latão não foi encontrada em nenhum lugar. Pois bem! Tenho certeza de que ela retornou ao Egito, e voltou ao Vale dos Reis!”
“Quem garante isto?” Indagou o médico, estremecendo. “Pode muito bem estar em posse de algum colecionador…”
“NÃO! NÃO ESTÁ!” Gritou Jean Paul. Depois, mais calmo: “Você não entende. Eu já estive no Vale antes de vir ao Cairo e fiz algumas investigações. Eu sei que a cabeça está lá.”
“Jean Paul, se você já esteve no Vale, porque não montou uma expedição? Por que vir ao Cairo me procurar?”
“Eu não poderia dividir esta descoberta com outras pessoas, meu amigo. Eu só confiaria em você. Imagine, se alguém se deu ao trabalho de trazer esta peça de volta ao Egito, imagine seu significado histórico e seu valor! Deve existir algo nela, pois todos os relatos falam de conhecimento, sabedoria…”
“…E que pode estar possuída por demônios e causar discórdia. Você já disse isto. Não sei, Jean Paul, estou em dúvida quanto a este seu projeto. Eu tenho trabalho aqui e além disto, eu e Shebeia…”
“Ah! Não me diga que tem medo de superstições, Marc! Vamos amigo, não me abandone… e você pode trazer sua companheira conosco!” Marc ia protestar, mas o amigo interrompeu: “É isso! Vamos pelo Nilo! Será uma viajem mais longa porém agradável. Você e sua companheira podem aproveitar o passeio! Eu pago!”
O médico ia contestar, mas algo nas feições de Jean Paul o calou. O amigo parecia desconcertado, ansioso até. Meio erguido da cadeira, gotas de suor eram visíveis em sua testa. Marc aquiesceu, talvez curioso pela urgência do amigo:
“Está bem, vamos com você. Mas não parece um passeio para uma dama.”
“Ora, Marc, ela é egípcia! Deve estar acostumada com viagens deste tipo. Venha, vamos comemorar! Partimos em três dias.”
Ao sair do Shepperd’s, a cabeça de Marc rodava, talvez pelo conhaque. Ou talvez fosse a história toda que Jean Paul lhe contara. Algo que começava a revirar seu estômago e que ele não conseguia adivinhar. Por alguma razão, o médico não conseguia tirar da cabeça que começava a odiar o velho amigo.
“NÃO!” Gritou Shebeia, seus olhos verdes falseando de ódio enquanto ela andava pelo quarto. Seu corpo delicado trajava um robe de seda esmeralda, que volteava ondulante enquanto ela gesticulava:
“EU NÃO VOU! ISTO É INADMISSÍVEL!” E seguiu-se uma torrente de palavras em egípcio que Marc mal conseguiu compreender. Ela parou em frente ao médico, levando a mão a seus cabelos curtos.
“Shebeia, veja bem. Pode ser interessante…” tornou Marc.
“Marc! Eu sou uma sacerdotisa de Bastet! Meu trabalho é proteger tesouros de saqueadores, não pilhar com eles!”
“Mas minha querida, nós não vamos saquear túmulos. Nós vamos atrás de uma única peça. Você indo conosco poderá conferir se realmente vamos furtar algo. Achei que gostaria de um passeio ao Vale dos Reis.”
“Você disse Vale dos Reis? Sabe o que tem no Vale?” Shebeia olhava apreensiva para o médico.
O que Marc se recordava do Vale era o que tinha visto quando chegou ao Egito em 1883, dois anos depois da descoberta por Emile Brughs das catacumbas de Dur il Bahau, guiado por Mohamed Abd. Ele vira os milhares de pessoas amontoadas na margem do Nilo, saudando religiosamente o cortejo de peças arqueológicas que iam ao museu em Bulak, terminando apenas em 1886.
Elas pareciam saudar um cortejo fúnebre, pois nas barcaças estavam os restos de nobres como Amenhotep l, Nefertari, Tutmoses l e III, Ramses II e III e Sety I. Talvez fosse isto que incomodasse Shebeia. Porém, ele a ouviu recitar:
“Nós sugamos a medula dos mortos
E nos alimentamos de sua carne putrefata.
Cada caixão é um reposto,
Cada cemitério é uma festa.
Os corpos de seus entes queridos
Não descansam por muito tempo no solo,
Aqui, onde jantamos.”
“O que disse?” Indagou o médico.
“Ghûls.” Murmurou Shebeia e colocou o dedo delicado sobre os lábios de Marc, antes que ele pudesse interroga-Ia, abraçando-o.
O médico sentiu o aroma de rosas e canela que vinham da moça, que agora estremecia e murmurava, escondendo um pavor em sua voz melodiosa:
“Eu vou com vocês. Não por causa de seu amigo saqueador, mas para não deixá-lo sozinho. Eu jamais iria me perdoar se algo acontecesse a você, jamais.”
Marc não conseguiu que ela lhe explicasse mais nada. Ele apenas acariciou os cabelos de Shebeia e deu-se por feliz em tê-la consigo.
No dia da partida, Shebeia atrasou-se e foi encontrar-se com Marc no cais. O médico mal pôde conter seu alívio quando a viu. A moça trajava seus robes negros e trazia consigo um volume de veludo azul. Marc estremeceu, pois conhecia o conteúdo do volume, e sabia que ele predizia problemas. Jean Paul foi recebê-la na prancha de subida:
“Muito prazer em conhecê-la, Senhorita Shebeia. Meu amigo muito falou sobre a senhorita. Meu nome é Jean Paul Visant. Interessante volume que traz consigo.”
“Prazer, senhor. Quanto ao volume, sou uma awalin, e este é o meu instrumento de trabalho.” Sua voz era fria, em um inglês sinistramente perfeito.
“Uma awalin?! Uma cortesã então?”
“Senhor! Uma awalin entretém mulheres com música! Acho um desrespeito o que disse e sugiro que se informe melhor sobre nossos costumes!” E passou irritada pelo arqueólogo e pelo médico, em direção à cabina.
“Você não causou boa impressão, Jean Paul.”
“Verdade. As mulheres egípcias são estranhas, meu amigo. Bem, já são l O horas. Logo vamos partir.”
O navio adentrou pelo Nilo, em direção a Aswaz, quando depois de muitas paradas iria até Lúxor e o Vale. Logo na primeira noite, ao jantarem, ficou evidente o desagrado de Shebeia pelo arqueólogo.
“Como disse, amigos”, falava Jean Paul enquanto se servia “Viajar pelo Nilo é bem mais agradável. Eu queria que apreciassem as vistas do Egito, vocês sabem como esta terra está repleta de beleza e de segredos, não acha, minha cara?”
“Realmente, senhor Jean Paul. O Egito tem seus segredos, que seriam melhor apreciados se deixados em seu devido lugar…”
“E serem destruídos pelo tempo ou usados como material de construção? Você com certeza não fala sério!”
“Tenho certeza de que arqueólogos como o senhor vêm ao Egito apenas para saquear seus tesouros, profanar túmulos e roubar corpos.”
“Apenas para podermos mostrar ao mundo toda beleza de uma civilização antiga! Não somos bárbaros que derretem metais preciosos para fazerem moedas. Nós escavamos a história dos séculos para mostrá-la à luz da modernidade!” Jean Paul estava exaltado. Marc interrompeu, servindo-se do peixe:
“Certamente, minha querida, você concorda no mérito em se divulgar a história de antigas civilizações. Os museus estão abertos a todos os interessados. Isto só traz bem ao Egito.”
“Você acha que todas as peças escavadas terminam em museus? E quanto aos tesouros contrabandeados para fora do país? E quanto aos segredos proibidos aos olhos dos homens? Você se lembra do que aconteceu conosco no Cairo?”
“Mas, senhorita,” interrompeu Jean Paul; “você, como muçulmana, deve concordar…”
“EU SOU EGÍPCIA!” Gritou Shebeia, chamando a atenção dos outros passageiros.
“Certamente, senhorita. Mas pelos seus trajes pensei que seguisse as leis do Corão, assim como boa parte do Egito…”
“Eu sigo a religião egípcia, senhor, com muito orgulho. Uma religião mais antiga do que aquela sobre um carpinteiro judeu!” Shebeia estava indignada.
Jean Paul começou a rir, não percebendo o olhar de ódio da moça. O arqueólogo mal podia falar por entre as risadas:
“Ora, por favor! Não me diga que acredita em deuses com cabeça de animais! Ora, isto não passa de fantasias de uma sociedade teocrática! Deuses egípcios! Quem diria…”
Shebeia levantou-se, furiosa. Saiu com passos largos, esbarrando nos garçons e tripulantes. Jean Paul, divertido, serviu-se de mais vinho:
“Muito divertida sua companheira, Marc! Incrível como idéias tão primitivas povoam uma cabecinha tão adorável.”
“Agora chega, Jean Paul! Podemos ser amigos, mas não tolerarei mais tais insultos a ela! Não me interessa em que Shebeia acredita. Eu a respeito e espero, no mínimo, que você seja cavalheiro o suficiente para portar-se com dignidade quando a reencontrar!” E partiu atrás de Shebeia, sem esperar a resposta do amigo.
Encontrou-a debruçada na amurada do navio, observando a margem noturna do Nilo e as estrelas refletidas na água.
“Oooh… eu o odeio! Odeio aquele maldito ladrão de túmulos hipócrita! Desculpe-me, Marc! Sei que ele é seu amigo, mas não consigo deixar de odiá-lo!”
“Calma, querida. Tudo bem.” Marc abraçou-a “Eu sei que ele lhe ofendeu. Tenho certeza de que foi o vinho que falou por ele. Jean Paul é uma boa pessoa, ele realmente acredita no que disse.”
“Ele é tão arrogante! Eu gostaria de amaldiçoá-lo com mil pragas! Isso me deixaria contente!”
Marc sorriu: “Calma, Shebeia, eu sei que você é bem capaz disto, mas não é necessário.”
“Ah, droga! É que ele é tão… tão inglês!”
Eu também sou inglês, querida.”
“Eu sei, mas você tenta superar esse defeito…”
Ambos sorriram enquanto a embarcação navegava pelo rio de estrelas refletidas na noite do deserto.
No sétimo dia de viajem chegaram a Karnak. De lá aportaram em Luxor, de onde viajariam até Bihan El Muluk, ou como era conhecido, o famoso Vale dos Reis.
Do Nilo ao Vale são dois dias no lombo de mulas e Marc estranhou que a expedição organizada por Jean Paul fosse composta apenas deles, dois árabes e um guia local.
Tanto ele quanto Shebeia sentiam-se inquietos quando, à noite, acordavam com o uivo dos chacais. Por precaução, o médico mantinha seu revólver a postos. Jean Paul Visant, do outro lado, estava ansioso e instigava os árabes a prosseguirem.
Por fim a trilha estreita levou-o ao seu destino, e o Vale, com suas entradas e caminhos esguios desfilavam em frente do grupo, enquanto desciam a ravina e se preparavam para acampar. Shebeia, no caminho, comentou:
“Este é um lugar onde abelhas fazem cera com a gordura dos mortos, Marc. Cera que pode ser usada para afastar os espíritos que ameaçam os homens. Aqui o mundo dos vivos é uma tênue memória que não é bem vinda…”
Como se ouvisse as palavras de Shebeia, Jean Paul voltou-se ao grupo, enquanto os árabes descarregavam o equipamento. Anoitecia e as sombras se espraiavam pelas rochas: “Agora vamos acampar por aqui e amanhã à noite partiremos em busca do túmulo onde repousa a peça.”
“À noite?!” Indagou Marc, enquanto Shebeia olhava para ele alarmada. “Por que à noite? Não seria mais prudente avançarmos de dia?”
“Ora, meu amigo, caso isso aplaque suas superstições, podemos avançar durante o dia. Mas só poderemos encontrar o túmulo que nos interessa de noite. Não é verdade, minha cara?” E dizendo isto olhou para Shebeia, que cabisbaixa, murmurou:
“Sim, é verdade.”
Marc observou-a perplexo, e depois perguntou friamente ao amigo: “Explique.”
“Olhe para o céu, Marc. Vê como a lua marca a entrada para o Vale? Perceba que as estrelas mais brilhantes formam um padrão no céu e se posicionam ao lado do braço da Via Láctea. Aquela estrela alaranjada ao fundo, meu amigo, marca o local onde se encontra o túmulo que nos interessa. As estrelas formam um guia para o Vale, Marc! Nós a usaremos como guias!”
“Como você sabe disso?” Indagou o médico.
“Eu li em papiros antigos. Os mesmos que apresentam o símbolo idêntico da tatuagem no braço de sua companheira.” Referiu Jean Paul à tatuagem de um escaravelho sob uma cabeça de gato no braço direito de Shebeia. “Ela deve conhecer tais segredos muito bem…”
E rindo, foi em direção de sua tenda.
Shebeia e Marc recolheram-se, e Marc interrogou sua companheira e amiga na pequena tenda, gesticulando furiosamente, indignado com o ocorrido:
“VOCÊ SABIA? COMO VOCÊ SABIA?”
A garota estava constrangida, encolhendo-se no canto da tenda, evitando olhar Marc com seus olhos verdes. O médico tentou se acalmar:
“Por que você não me contou? Vamos, Responda!”
“Marc, eu… Desculpe. Tente entender, isso sempre foi um segredo da minha ordem. Eu não poderia contar para qualquer um…”
“Como eu? Um inglês típico? Shebeia, você sabia que viríamos ao Vale; eu lhe contei tudo que sabia sobre a cabeça e sobre Jean Paul e ainda assim você escondeu isto de mim!”
“Eu achei que não era importante… não sei como ele poderia saber disto…”
Marc acariciou os cabelos curtos e a face da egípcia, fazendo-a encontrar seus olhos com os dele:
“Shebeia, querida, o que mais você está escondendo?’
“Marc, eu…”
“Por favor, sem mais segredos, está bem?”
Ela assentiu com a cabeça e suspirou. Sentando-se ereta, começou a falar, enquanto as sombras formadas pela lanterna brincavam com o rosto da bela awallin, dando-lhe um aspecto surreal:
“Foi Tutmés I quem teve a idéia de construir o Vale dos Reis, separando assim os templos dos túmulos. A idéia era a de esconder os corpos dos nobres de ladrões gananciosos.”
A tarefa, porém não era fácil: rituais apropriados deviam ser seguidos periodicamente e toda construção devia ser secreta. O arquiteto responsável foi Ineni, um membro da minha ordem. O administrador do Vale recebia o nome de Príncipe do Oeste e Comandante dos Soldados da Necrópole, e era ajudado pela ordem sagrada de Bastet em Bubastis.’
‘As tumbas dos reis foram ordenadas na forma de uma flauta de pastor; uma siringe. Os reis e rainhas eram enterrados com todos os seus tesouros, em túmulos separados, e a ordem de Bastet se encarregava dos segredos que eles levavam consigo…’
‘Não funcionou. Os saques aumentaram e no reinado de Osorcon I, os ladrões pagavam suborno aos guardas do vale. Os sacerdotes começaram então a mover corpos de um túmulo ao outro, na calada da noite.’
A ordem de Bastet resolveu salvaguardar todos os artefatos e segredos místicos que repousavam no vale. Eles pilharam todos os túmulos e esconderam essas preciosidades em outros locais, seguindo como orientação estrelas fixas no céu. O que seu amigo disse ter lido deve ser um mapa para estes túmulos específicos. Só não sei como ele o conseguiu ‘
“E o que são os Ghûls, que você mencionou?”, interpelou Marc.
Ghûls? Eles são abutres. Não! Eles são piores do que abutres; são chacais! Eles devoram os mortos e se escondem, em cemitérios, atacando quem quer que cruze seu caminho! Esses demônios foram responsáveis pela morte de muitos sacerdotes de Bastet!” Shebeia demonstrava toda sua repulsa e ódio por estas criaturas, com os olhos reluzindo como que em chamas. “Eles são parasitas imundos! Eu…”
Um grito cortou a noite, interrompendo Shebeia. Seguiu-se o som de tiros, novos gritos e então silêncio.
Marc pegou o revólver e saiu com Shebeia, encontrando Jean Paul já fora de sua tenda, ajeitando os óculos:
“O que houve?” Perguntou Marc.
“Não sei, ouvi tiros. Onde estão os árabes?”
O trio correu até uma pequena duna, onde estavam os outros. Encontraram o guia morto, com os árabes agachados sobre ele.
Marc empurrou de lado um dos homens, a fim de examinar o corpo, mal percebendo que o árabe estava mais pesado e curvado que antes. Envolto nas suas roupas tradicionais, o brilho nos olhos do homem não foi notado.
“Cristo, olhem para isso.” Comentou o médico, “Sua garganta foi destroçada!”
De fato, o guia apresentava marcas de mordidas na garganta e ferimentos por todo corpo, que pareciam terem sido feitos por garras. O sangue já havia sido absorvido pela areia e um dos seus punhos tinha uma marca de mordida que havia exposto os ossos. A outra mão contorcia-se em volta do cabo de uma jambyia e ao longe estava a carabina abandonada no chão. Seus olhos estavam esbugalhados, refletindo as estrelas do vale.
“Ele tentou realmente lutar com alguma coisa” Comentou Marc. “O que ocorreu aqui?”
“Chacais, sahib, chacais.” Retrucou um dos árabes em voz rouca.
O médico ia retrucar não ter ouvido nenhum uivo, quando Jean Paul interrompeu:
“É verdade. Eu vi alguns vultos rondando o acampamento antes de me deitar. É bem possível que estivessem atrás das mulas.” Shebeia continuava calada, indo examinar a carabina. “Vamos averiguar. De qualquer modo, os tiros devem ter espantado os chacais.”
Mais que depressa, os árabes concordaram e puseram-se em movimento. Algum tempo depois Jean Paul retornou com notícias:
“Tivemos sorte. Nenhuma mula foi morta. Poderemos continuar amanhã sem problemas.”
“Como assim?” Interrompeu Marc. “Jean Paul, um homem morreu! Seria mais prudente voltarmos…”
“Inadmissível! Não se preocupe; os árabes conhecem uma tumba vazia aqui perto e irão depositar o corpo lá. Eles se encontrarão conosco mais tarde. Além do mais nada mais justo para um guia do Vale dos Reis ser enterrado junto a eles, não acha?”
Marc deu as costas ao amigo, enojado. Juntou-se a Shebeia, que ainda examinava a carabina. Tanto a madeira quanto o metal mostravam marcas de mordidas e algo estava cravado no cano. Com um canivete, Marc extraiu o objeto.
Era um dente canino.
“Isto não é um dente de chacal…” Murmurou Shebeia.
O trio partiu ao amanhecer. Nenhum deles notou, escondidos na areia, alguns ossos ainda sujos de sangue e carne, sem qualquer pele para cobri-los.
Noite. A lua minguante mal tinha brilho para iluminar as sombras do vale. Na frente de uma das tum bas estavam o trio e os dois árabes. Sobre eles ao longe brilhava uma estrela alaranjada, como um alfinete que assinalava o local de uma mariposa morta.
“Chegamos!” Exclamou triunfante Jean Paul.
“Parabéns.” Murmurou Shebeia com frieza. “Agora aconselho você marcar o local da tumba e prosseguir com esta empreitada amaldiçoada à luz do dia.”
“Concordo.” Tornou Marc.
Jean Paul virou-se para a dupla com um sorriso cruel. Na penumbra das tochas, ele parecia até triste:
“Infelizmente, meus amigos, isto não será possível.”
Ante o olhar espantado do casal, as tochas que os árabes seguravam foram jogadas ao chão apagando-se. Marc ouviu o som de tecido sendo rasgado seguido pelo grito de Shebeia, enquanto algo a agarrava na escuridão.
Apalermado, o médico virou-se em direção dos árabes. Ambos agarravam Shebeia, que se debatia ferozmente. Marc atirou duas vezes em um dos agressores, que soltou a moça. Ela aproveitou o momento e cravou as unhas na face do outro homem.
A lua, até então tímida, lançou sua luz no vale, desfraldando o horror do momento.
O árabe ferido se levantava, levando a mão ao abdome. Mas não eram dedos que comprimiam a ferida de onde sangue negro escorria; mas sim garras duras como obsidiana e grandes como facas, cuja pele que antes as escondia, caía aos pedaços por não conseguir conter o tamanho daquela monstruosidade inumana. Sua face era um misto de cão e homem, com presas amareladas protuzindo pela boca, deformadas demais para serem escondidas pelos lábios monstruosos.
Do mesmo modo, aquele que segurava Shebeia escondia pelos acinzentados de uma face canina por detrás da pele rasgada. A garota se debatia aterrorizada.
Marc mirou trêmulo para a cabeça da criatura, mas antes que pudesse atirar algo lhe atingiu a nuca. O médico largou o revólver e caiu por terra, enquanto os gritos de Shebeia sumiam na noite. Em meio à névoa de inconsciência, Marc pode ver Jean Paul agachado na frente dele segurando uma tocha apagada:
“Desculpe, colega. São os ossos do ofício… Você sabe como é…”
Marc acordou e sua primeira sensação foi a dor constante na cabeça.
Enquanto tentava se levantar, o médico focou a visão. Estava no que parecia ser uma arena circular de terra batida e colunas o rodeavam, unindo-se umas com as outras em arcos, formando três quartos de um círculo. A sua frente estava uma elevação de quase um metro, de granito cinzento, de onde podia ser visto um altar simples. Em cima dele encontrava-se um volume coberto por um pano púrpura, de mais ou menos dois palmos de altura. Apenas velas ao redor da elevação iluminavam o local.
O médico tentou ir até a elevação, mas parou ao perceber que estava acorrentado ao chão por um grilhão que lhe prendia o tornozelo.
“Bom saber que está vivo, velho amigo. Temi que tivesse rachado seu crânio.” A voz de Jean Paul vinha detrás do altar.
“Jean Paul! Seu canalha maldito! O que significa isto? Onde está Shebeia? Se você fez algo a ela…”
“Não devia se preocupar com aquela pagã, Marc. Eu a dei de presente aos meus associados. Sabe, eles parecem ter uma certa predileção por tipos como ela…”
Com isto Marc percebeu que não estava sozinho. Das sombras começou a ouvir o ganir de várias criaturas; seus olhos vermelhos ou amarelados cintilando às centenas na escuridão. Um cheiro de carne morta e poeira invadiu o salão e Marc discerniu na escuridão as formas retorcidas de seus captores.
Eram humanóides de face canina e cascos ao invés de pés, cobertos de pêlos cinzas ou amarronzados. Muitos estavam nus, com seus deformados órgãos, machos e fêmeas, à mostra. Outros vestiam roupas ou trapos árabes. Todos tinham presas disformes e eram do mesmo modo, desumanizados.
Atrás de Jean Paul, vestindo um robe decorado e um kefez, estava outra destas criaturas; menor, mais encurvada e acinzentada, apoiando-se em um bordão retorcido. Seus olhos esverdeados tinham um brilho hediondo, como se o próprio inferno consumisse os órgãos daquele ser. Marc tentava se libertar em vão, enquanto um frio cáustico corria por sua espinha:
“Quem são eles? O que querem?”
“Meus associados, Marc! Este ao meu lado é Madiz e fala um pouco de árabe. Parece ser o líder deles. A minha primeira expedição foi devorada por eles… Só eu escapei, graças aos meus conhecimentos e minha disposição em fazer um acordo…”
“Que acordo?”
“O de trazer para eles um sacrifício em troca do artefato!” Jean Paul tocou o volume. “Estes, Marc, são Ghûls do velho mundo, sábios nos caminhos da feitiçaria. Madiz, por exemplo, está vivo desde a época dos faraós!” Como que entendendo, os ghûls começaram a uivar “E esta, velho amigo, é a peça que lutei tanto para obter:”
Jean Paul retirou o pano. Sobre o altar estava uma cabeça de latão finamente cinzelada. Ela tinha o tamanho de uma cabeça natural e as faces de um homem. Não tinha cabelos, mas podia-se ver que existia uma espécie de tampa onde seria sua calota craniana. Tanto os olhos como a boca estava fechada, mas podia-se perceber que pareciam apresentar pontos de articulação. Ante o brado e o uivo dos ghûls que cercavam o médico, Jean Paul levantou a cabeça e bradou:
“Eis a cabeça de latão do Papa Silvestre II!”
“Lembre-se, pequena, nós protegemos segredos contra forças negras e às vezes temos de agir como elas. Tanto o gato com quem brinca quanto à pantera que espreita nas rochas são servos de Bastet…”
Uma jovem Shebeia tentava ficar acordada na penumbra do templo enquanto o velho sacerdote lhe ensinava. Mas algo estava errado, e ela sentiu um nó no estômago quando a cabeça do sacerdote foi substituída pela de um chacal…
Ofegante, Shebeia acordou jogada na sujeira e na escuridão. Seu traje estava rasgado e ela estava amarrada com tiras de couro cru nos pulsos e nas pernas. Seu rosto repousava em uma superfície dura e irregular, que lhe feria a bochecha. Pareciam pedras, embora algumas fossem maiores e mais longas. E havia o cheiro.
Shebeia usou de toda sua força de vontade para segurar a náusea e o desejo de gritar. Seu corpo tremia e suas vísceras se retorciam de asco e medo. Shebeia sabia que estava deitada sobre um monte de ossos, com falanges e costelas, algumas limpas outras mal devoradas, perfurando sua pele. Ela estava no depósito de comida dos ghûls.
Lenta e dolorosamente, a moça conseguiu virar o corpo e começou a tentar romper suas amarras usando algum osso afiado. Ao longe, ouvia os ganidos e grunhidos de alguma criatura, mordendo e sugando algo. Shebeia mordeu os lábios e procurou manter-se calada enquanto o osso cortava sua pele e as amarras que a prendiam. Ela estava aterrorizada demais para se perguntar onde Marc estava.
Os ganidos se multiplicaram e misturaram-se com o som de luta e de mais mastigar. Shebeia ouviu duas palavras em egípcio; “fêmea” e “refeição”, seguidos de risos guturais.
Solta, Shebeia poderia fugir. Ela precisava saber onde estava Marc. Temia que os sons de mastigação fossem o prenuncio de algo horrível demais para ela suportar.
“Bastet e Sekmet, piedosas deusas, ajudem sua serva. Abram seus olhos.”
Formas cinzentas começaram a aparecer no campo de visão de Shebeia. Ela estava em uma alcova coberta de ossos partidos. Ao fundo havia uma passagem bloqueada por duas criaturas, que disputavam entre si os pedaços de um corpo humano que era sua refeição. Ela tentou, com sua visão mística, reconhecer o cadáver que estava sendo devorado, tentando reprimir o grito de horror e medo que seu instinto humano teimava em formar.
Shebeia esticava o pescoço e contorcia seu corpo, tentando descobrir a identidade do morto. Então, um dos ghûls se moveu, descobrindo o rosto do falecido e ela pode ver:
Não era nenhum homem branco. Era o corpo do guia.
Shebeia se sentiu aliviada pelo cadáver não ser de Marc. Sabendo naquele momento que ela e o médico haviam sido traídos, ela decidiu se vingar. Ela encontraria Marc e escaparia.
E arrancaria o coração de Jean Paul.
“Imagine o poder que está ao meu alcance, Marc!” Jean Paul acariciava apaixonado a cabeça, seus olhos com um brilho lunático. O médico tentava esconder o tremor:
“Eu imagino que você traiu seu amigo e assassinou friamente outras pessoas em troca de uma peça velha de latão! E por que tudo isto?” Jean Paul riu de forma maníaca, seguido pelos ghûls.
“Você não percebe? Não é um espírito que possui a cabeça, mas vários! Ah… Marc, você não tem idéia das maravilhas deste artefato nem de sua perfeita construção!”
‘Você me pergunta o porquê: Basta saber que quando soube de você bem estabelecido no Cairo, vivendo com uma egípcia, pensei ser uma boa idéia trazê-lo comigo. Especialmente se a egípcia era uma sacerdotisa de um deus obscuro… Que direito você tem de questionar meus motivos? Você, dormindo com uma pagã? Deveria se envergonhar de manchar seu sangue inglês! Você é uma vítima casual, meu amigo, o prato principal é a vadia egípcia!”
“Você é insano!”
“Talvez, mas não estou acorrentado. Nem serei devorado.”
Os dois ghûls disputavam a sorte com dedos cortados do morto a respeito de uma porção de carne. Não perceberam um vulto se levantar atrás deles até ser tarde demais.
Como um leopardo, Shebeia saltou sobre os ghûls. A força do impacto lançou uma das criaturas de cara dentro do abdome do corpo que devoravam. O outro demorou um instante para perceber o ocorrido; o suficiente para receber em sua têmpora o golpe de um fêmur humano, fazendo-o cair para trás.
Sujo de sangue e entranhas, o outro ghûl levantou a cabeça. Com um rosnado animalesco, Shebeia rasgou os olhos da criatura com suas unhas fortalecidas com magia. Ela juntou um grito de triunfo ao grito de dor da criatura quando atacou novamente; agora a garganta do ghûl, partindo sua pele coriácea e expondo os delicados vasos protegidos por músculos. Foi com uma satisfação selvagem que Shebeia banhou seus braços com o sangue quente desses vasos enquanto o ghûl perecia.
O outro ghûl se levantava. Shebeia estava ao lado dele e golpeou-o uma, duas, várias vezes com um fêmur, até ouvir o som do crânio dele rachar com um estalo seco. Shebeia continuou golpeando por mais algum tempo.
Ela soltou o fêmur e encostou-se à parede, arfando e suando. Olhou para suas mão cobertas de sangue negro e sentiu espasmos percorrerem seu corpo. Shebeia se ajoelhou no chão sujo e vomitou bile amarga, tremendo e se contorcendo enquanto lágrimas corriam por sua face. Ela tinha chamado pelo aspecto violento de sua deusa e tinha sido atendida.
O abismo havia olhado de volta para ela.
Marc tentava desesperadamente ganhar mais tempo. Os ghûls fechavam o cerco ao redor do médico enquanto Madiz afiava as garras no beiral da plataforma, de costas para Jean Paul. Este por sua vez, explicava o poder da cabeça:
“…Ela não só permite que eu acesse conhecimentos antigos. Permite que eu os reproduza. Só é necessário o material adequado.”
Absorto, Marc tentava raciocinar em como escapar, e perguntou, como que por acaso:
“Que material?”
“No momento, meu amigo Madiz aqui.” E dizendo isso, sacou de um machete e decapitou o velho ghûl.
Madiz teve tempo de emitir um ganido curto e mais nada. Marc e os ghûls olhavam abismados para o corpo sem cabeça do velho ghûl enquanto Jean Paul erguia a cabeça decapitada. Os ghûls observavam o sangue jorrar do corpo de seu líder, perplexos e sem compreenderem o que ocorrera. Jean Paul sorriu:
“Talvez se você não estivesse acorrentado, poderia aproveitar e fugir comigo, Marc. Bem, você servirá para atrasá-los o suficiente. Au revoir!” E partiu pelo corredor atrás da elevação.
Os ghûls mantiveram-se em silêncio até o corpo de Madiz tombar da elevação. Então lançaram em uníssono um brado de ódio e prepararam-se para saltarem sobre o médico e despedaçá-lo antes de perseguirem aquele que matara seu líder.
Não chegaram, contudo a se aproximar. No meio do caminho, recuaram uivando e sibilando ao som de uma voz:
“Na’ghingor thdid eym
Myn th’x barsoom eu’gndar…”
Shebeia apareceu por detrás de um dos pilares. Seus olhos verdes brilhavam um brilho sobrenatural e seus braços e rosto estavam sujos de sangue. Ela murmurava enquanto avançava em direção a Marc:
“…In’garh gire mith’nabor
In’gath non vell’dekk…”
Shebeia postou-se na frente dos ghûls, protegendo Marc. As criaturas se afastavam, repelidas por uma força invisível. Ela levantou o braço esquerdo e uniu o polegar e o dedo mínimo no centro da mão espalmada. O médico ficou abismado com aquela figura irreal, ao mesmo tempo magnífica e aterrorizante. Os ghûls rosnavam de medo. Ela bradou:
“…Yig Sudeth M’cylonum
M’xxlht Kraddath Soggoth
lm’bltnk Nog S’dath bleamed!”
Os ghûls se afastaram como se feridos. Shebeia voltou-se para Marc:
“Não temos muito tempo. Vamos sair daqui. Agora!”
“Shebeia, meu deus! Você está coberta de sangue! O que houve?”
Ela traçou um símbolo estranho no grilhão de Marc e este se partiu com um sonoro clac. O médico olhou apalermado:
“Como…”
“Psss! Venha, por aqui!”
Shebeia arrastou-o pelo corredor atrás da elevação e ambos se perderam na escuridão. Marc tropeçava cego nas pedras do túnel. Shebeia, porém, agarrava cada vez mais forte o braço do médico, guiando-o na escuridão. Atrás deles, começaram a surgir gritos e uivos, seguidos do som de cascos sobre as pedras.
Aproximavam-se cada vez mais.
Marc sentiu uma lufada de vento frio no rosto e parecia que subiam. Na escuridão o médico só tinha consciência da mão de Shebeia enquanto o som de seus perseguidores ficava cada vez mais próximos, a ponto de poder sentir atrás deles o hálito fétido das criaturas.
Então, ao longe, um minúsculo ponto de luz feriu os olhos do médico. Parecia tão pálido e tão distante! Eles tropeçaram e forçaram ainda mais o passo. Aos poucos, o ponto luminoso cresceu até parecer uma bocarra.
Marc e Shebeia saíram para a superfície a tempo de verem o raiar do dia no Vale dos Reis. Com os olhos doendo, Marc cambaleou para fora e virou-se a tempo de ver Shebeia traçar o símbolo de uma mão com um olho em seu interior e pronunciar a um só fôlego:
“Você deixará este local que nega a lógica de suas indas e vindas e levará, em nome do Inominado, todos seus asseclas e artefatos consigo e mesmo o pronunciar de seu nome estará perdido para este mundo até que o tempo tenha devorado sua própria cabeça!”
Um uivo partiu da caverna, tão alto e tão terrível, que o casal foi jogado ao chão. O grito silenciou abruptamente, deixando só o silêncio do nascer do sol. Marc se aproximou de Shebeia, erguendo-a. Ela murmurava:
“Oh, Marc… Marc! Foi horrível… Oh, deuses! E-Estamos seguros agora! Eu selei a entrada! Estamos seguros…” E soluçava nos braços do médico.
Jean Paul desaparecera.
Marc e Shebeia retornavam pelo Nilo. A moça ficou muda até Karnak sumir de vista, então contou ao médico tudo que ocorrera, terminando por chorar em seus braços. Marc aconchegou a agora frágil sacerdotisa enquanto ela dormia. Eles subiam pelo Nilo e as estrelas brilhavam mais intensamente, banhando o casal em sua luz suave.
O cargueiro “Promenade” partiria de Alexandria para Istambul. Além de sua carga habitual, trazia passageiro consigo. Embora rúpias tivessem pagado sua passagem, foram libras esterlinas que pagaram por sua privacidade.
Jean Paul depositou dois volumes sobre a mesa. De um deles partia um cheiro forte e desagradável do qual Jean Paul já se acostumara . Do outro retirou uma cabeça de latão.
O conhaque comprado no porto ajudou na repugnante tarefa de abrir o crânio humanóide que trouxera consigo e de lá retirar o cérebro. O restante da cabeça canina foi lançado ao mar pela escotilha.
Tomando mais um gole de conhaque, Jean Paul abriu a tampa da cabeça de latão e colocou o cérebro recém adquirido em seu interior, fechando a tampa logo depois. Respirou fundo e observou o artefato. Este cérebro em especial, que segredos guardaria?
Preparou papel e lápis e sentou-se de frente para a cabeça, murmurando:
“Estou pronto para começar.”
Pálpebras de latão abriram-se revelando um brilho avermelhado e lábios, antes cerrados, começaram a se mover mecanicamente.
Jean Paul Visant começou a escrever.
FIM
MARCO POLI DE ARAÚJO